Fonologia do crioulo cabo-verdiano – Wikipédia, a enciclopédia livre

O sistema fonológico do crioulo cabo-verdiano deriva em grande parte do sistema fonológico do português dos século XV a XVII. Entre características conservadoras o crioulo manteve, por exemplo, as consoantes africadas /ʤ/ e /ʧ/ (escritas «j» (em início de palavra) e «ch», no português antigo) que já não estão em uso no português contemporâneo, e as vogais pré-tónicas não sofreram a redução que se verifica no português europeu contemporâneo. Entre características inovadoras, o fonema /ʎ/ do português (escrito lh) evoluiu para o fonema /ʤ/ em crioulo, e as vogais foram sujeitas a diversos fenómenos fonéticos.

Para o ortografia que será usada neste artigo:

No crioulo cabo-verdiano encontramos oito fonemas vocálicos orais, e os correspondentes oito fonemas nasais, perfazendo assim um total de dezasseis vogais:[1]

Sons vocálicos
Anterior
não-arredondada
Central
não-arredondada
Posterior
arredondada
oral nasal oral nasal oral nasal
Fechada i ĩ u ũ
Semifechada e o õ
Semiaberta ɛ ɛ̃ ɐ ɐ̃ ɔ ɔ̃
Aberta a ã

No entanto, essas vogais não aparecem em qualquer contexto. Só em posição tónica é que podemos encontrar qualquer uma das dezasseis vogais apresentadas acima. Em posição átona pré-tónica normalmente não aparecem as vogais /ɛ/, /ɛ̃/, /a/, /ã/, /ɔ/ ou /ɔ̃/. Em posição átona final só aparecem as vogais /i/, /ɐ/ ou /u/ (no crioulo de Santiago por vezes /e/ ou /o/).

Descrição dos fonemas vocálicos

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Fonema Exemplo Significado em português Descrição
/i/ mídju /ˈmiʤu/
lí /li/
sí /si/
milho
aqui
se
Anterior fechada oral não-arredondada,
como em português bico.
/ĩ/ cínza /ˈsĩzɐ/
sím /sĩ/
cinza
sim
Anterior fechada nasal não-arredondada,
como em português fim.
/e/ drêtu /ˈdɾetu/
lê /le/
bêra /ˈbeɾɐ/
sê /se/
bem, direito
ler
beira
seu, sua
Anterior semifechada oral não-arredondada,
como em português dedo.
/ẽ/ bêm /bẽ/
sêm /sẽ/
vir
sem
Anterior semifechada nasal não-arredondada,
como em português pensar.
/ɛ/ cabéça /kɐˈbɛsɐ/
béra /ˈbɛɾɐ/
Béla /ˈbɛlɐ/
séda /ˈsɛdɐ/
cabeça
mau, bera
Bela (nome)
seda
Anterior semiaberta oral não-arredondada,
como em português fé.
/ɛ̃/ duénça /duˈɛ̃sɐ/
sénda /ˈsɛ̃dɐ/
doença
senda
Anterior semiaberta nasal não-arredondada,
parecida com o e do português fé, mas com nasalidade.
/ɐ/ cabéça /kɐˈbɛsɐ/
cabâ /kɐˈbɐ/
pâ /pɐ/
cabeça
acabar
para, por
Central semiaberta oral não-arredondada,
como em português (europeu) para.
/ɐ̃/ cansêra /kɐ̃ˈseɾɐ/
cam /kɐ̃ˈbɐ/
canseira
enfiar-se, desaparecer
Central semiaberta nasal não-arredondada,
como em português dançar.
/a/ cábra /ˈkabɾɐ/
bála /ˈbalɐ/
báda /ˈbadɐ/
pá /pa/
cabra
bala
ida
Central aberta oral não-arredondada,
como em português pá.
/ã/ bánda /ˈbãdɐ/ lado, banda Central aberta nasal não-arredondada,
parecida com o a do português pá, mas com nasalidade.
/u/ túdu /ˈtudu/
bú /bu/
múdu /ˈmudu/
tudo
tu
mudo
Posterior fechada oral arredondada,
como em português tu.
/ũ/ úm /ũ/
múndu /ˈmũdu/
um
mundo
Posterior fechada nasal arredondada,
como em português um.
/o/ lôça /ˈlosɐ/
cinôra /siˈnoɾɐ/
bô /bo/
pô /po/
louça
cenoura
tu
pôr
Posterior semifechada oral arredondada,
como em português boca.
/õ/ bôm /bõ/
põ /põ/
bom
pão
Posterior semifechada nasal arredondada,
como em português convite.
/ɔ/ bóca /ˈbɔkɐ/
bóla /ˈbɔlɐ/
sinhóra /siˈɲɔɾɐ/
móda /ˈmɔdɐ/
boca
bola
senhora
como
Posterior semiaberta oral arredondada,
como em português só.
/ɔ̃/ spónja /ˈspɔ̃ʒɐ/
mónda /ˈmɔ̃dɐ/
esponja
monda
Posterior semiaberta nasal arredondada,
parecida com o o do português só, mas com nasalidade.

Notas acerca das vogais

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  • Dialectalmente, podem ser encontradas[1] [2] as vogais [ɯ], [ɤ], [ɑ], [æ], [ɒ].
  • Rigorosamente, a vogal central aberta devia ser representada por [ä], mas para simplificar costuma vir representada como [a].
  • Lopes da Silva[2] identifica as vogais médias [e̞] e [o̞], mas fonologicamente não se distinguem das semifechadas [e] e [o].

Consoantes e semi-vogais

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No crioulo cabo-verdiano encontramos 24 fonemas consonânticos e semivocálicos (aproximantes mediais).[1] Alguns desses fonemas têm alofones fonéticos.

Sons consonânticos e semivocálicos
Ponto de articulação → Labial Coronal Dorsal
Modo de articulação ↓ Bilabial Labiodental Labiovelar Dental Alveolar Pós-alveolar Palatal Velar Uvular
Nasal m     n     ɲ ŋ  
Oclusiva p b         t d             k ɡ    
Africada                     ʧ ʤ            
Fricativa     f v     s z     ʃ ʒ           ʁ
Aproximante medial     w       j    
Vibrante simples         ɾ        
Vibrante múltipla         r       ʀ
Aproximante lateral       l     ʎ    

Descrição dos fonemas consonânticos

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Fonema Exemplo Significado em português Descrição
/m/ mídju /ˈmiʤu/
mâ /mɐ/
milho
que
Nasal bilabial sonora,
como em português milho.
/p/ pédra /ˈpɛdɾɐ/
capâ /kɐˈpɐ/
pedra
castrar
Oclusiva bilabial surda,
como em português pedra.
/b/ bóca /ˈbɔkɐ/
cabâ /kɐˈbɐ/
grabâ /ɡɾɐˈbɐ/
boca
acabar
ofender-se, levar agravo
Oclusiva bilabial sonora,
como em português boca.
/f/ fídju /ˈfiʤu/
fíla /ˈfilɐ/
filho
fila
Fricativa labiodental surda,
como em português filho.
/v/ av /ɐviˈõ/
víla /ˈvilɐ/
gravâ /ɡɾɐˈvɐ/
avião
vila
gravar (em CD ou K7)
Fricativa labiodental sonora,
como em português ver.
/n/ náda /ˈnadɐ/
nâ /nɐ/
nada
em
Nasal dental sonora,
como em português nada.
/t/ túdu /ˈtudu/
tâ /tɐ/
tudo
partícula para o aspecto imperfectivo nos verbos
Oclusiva dental surda,
como em português tu.
/d/ da /ˈnadɐ/
dâ /dɐ/
nada
dar
Oclusiva dental sonora,
como em português dá.
/s/ sím /sĩ/
ça /ˈkasɐ/
sim
caça
Fricativa dental surda,
como em português sim.
/z/ sa /ˈkozɐ/
sa /ˈkazɐ/
surrísu /suˈʀizu/
coisa
casa
sorriso
Fricativa dental sonora,
como em português zero.
/l/ lí /li/
lu /ˈkalu/
la /ˈfilɐ/
aqui
calo
fila
Aproximante lateral dental sonora,
como em francês elle;
nunca é velarizado como no português europeu.
/ɾ/ drêtu /ˈdɾetu/
ru /ˈkaɾu/
bem, direito
caro
Vibrante alveolar simples sonora,
como no português direito.
/ʧ/ tchêu /ʧew/
tchícra /ˈʧikɾɐ/
muito, muita, muitos, muitas
armadilha para caçar pássaros
Africada pós-alveolar surda,
como em espanhol chico, inglês chair, italiano cielo.
/ʤ/ djâ /ʤɐ/
djêu /ʤew/
dju /ˈbeʤu/

ilhéu
velho
Africada pós-alveolar sonora,
como em inglês just, italiano giorno.
/ʃ/ xa /ˈkaʃɐ/
quexáda /keˈʃadɐ/
xícra /ˈʃikɾɐ/
caixa
queixo
xícara
Fricativa pós-alveolar surda,
como em português caixa.
/ʒ/ lôngi /ˈlõʒi/
quejáda /keˈʒadɐ/
ju /ˈbeʒu/
ju /ˈʀiʒu/
longe
queijada
beijo
rijo
Fricativa pós-alveolar sonora,
como em português já.
/ɲ/ nhâ /ɲɐ/ meu, minha Nasal palatal sonora,
como em português vinho.
/ʎ/ bilhêti /biˈʎeti/
lha /fiˈʎɐ/
bilhete
filha
Aproximante lateral palatal sonora,
como em português bilhete.
/ŋ/ ngúli (Sant.) /ˈŋuli/ olhar de viés Nasal velar sonora,
ver esta nota.
/k/ cretchêu /kɾeˈʧew/
cálu /ˈkalu/
namorado, namorada
calo
Oclusiva velar surda,
como em português caco.
/ɡ/ ’ngúli (Sant.) /ˈŋɡuli/
gálu /ˈɡalu/
engolir
galo
Oclusiva velar sonora,
como em português gago.
/ʀ/ róda /ˈʀɔdɐ/
rru /ˈkaʀu/
roda
carro
Conforme o falante, este fonema pode ser realizado de três maneiras:
 – Vibrante alveolar múltipla sonora [r], como em espanhol perro;
 – Fricativa uvular sonora [ʁ], como em francês (região parisiense) terre;
 – Vibrante múltipla uvular sonora [ʀ], como em francês (Sul de França) terre;

Notas acerca das consoantes

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  • As consoantes coronais [n], [t], [d], [s], [z] e [l] são pronunciadas com a língua na posição horizontal, e a ponta da língua a tocar os dentes incisivos superiores. É por esse motivo que os linguistas do crioulo cabo-verdiano denominam-nas de dentais[1], apesar de o AFI denominá-las de alveolares. As consoantes [ɾ] e [r] são de facto alveolares.
  • O fonema /z/ é realizado surdo [s] quando está antes de consoantes surdas ou em fim absoluto da frase. Por ex., a palavra nhâs /ɲɐz/ (meus / minhas) é realizada com [z] em nhâs amígu [ɲɐz ɐˈmiɡu], nhâs minínu [ɲɐz miˈninu], mas com [s] em nhâs coléga [ɲɐs koˈlɛɡɐ], nhâs [ɲɐs]. Acontece o mesmo nas variantes que palatizam o «s» (S. Vic. & S. Ant.): a palavra nhâs /ɲɐʒ/ (meus / minhas) é realizada com [ʒ] em nhâs amíg’ [ɲɐʒ ɐˈmiɡ], nhâs m’nin’ [ɲɐz mnin], mas com [ʃ] em nhâs coléga [ɲɐʃ koˈlɛɡɐ], nhâs [ɲɐʃ].
  • O fonema /ʎ/ só aparece em palavras importadas recentemente do português.
  • Existem os sons [ʔ] e [h], mas só aparecem em interjeições e onomatopeias. Não têm valor fonémico. Ex.: [ʔmʔm] (interjeição a significar «não»), [mhm] (interjeição a significar «sim»).
  • Dialectalmente, podem ser encontradas[1] [2] as consoantes [n͇], [t͇], [d͇], [ɾʰ], [ʃʷ], [ʒʷ], [c], [ɟ], [x], [ɣ].

Nota acerca da primeira pessoa do singular

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  • O pronome pessoal que representa a forma sujeita da primeira pessoa do singular tem uma pronúncia bastante variável nas várias ilhas.
    Esse pronome deriva da forma de complemento da primeira pessoa do singular em português «mim» e encontra-se fonéticamente reduzido ao som [m]. Trata-se de uma consoante silábica, constituindo por si só uma sílaba (o que pode ser verificado, por exemplo, na métrica das canções). Rigorosamente, essa consoante devia ser representada por [m̩], mas para simplificar costuma vir representada como [m].
    Esta pronúncia encontra-se presentemente nas variantes de Barlavento. Nas variantes de Sotavento essa consoante [m] foi reduzida a uma simples nasalidade [ƞ]. Por ex.: m’ andâ [ƞ ɐ̃ˈdɐ] «eu andei», m’ stâ tâ sintí [ƞ stɐ tɐ sĩˈti] «eu estou a sentir», m’ labába [ƞ lɐˈbabɐ] «eu lavara». Antes de consoantes oclusivas ou africadas essa nasalidade transforma-se na nasal homorgânica da consoante seguinte. Por ex.: m’ bêm [m bẽ] «eu vim», m’ têm [n tẽ] «eu tenho», m’ tchigâ [ɲ ʧiˈɡɐ] «eu cheguei», m’ crê [ŋ kɾe] «eu quero».
    Os falantes fortemente influenciados pelo português tendem a pronunciar esse pronome como uma vogal úm [ũ] em vez de m’ [m].
    Com algumas formas verbais do verbo sêr, o pronome retoma a sua forma completa em todas as variantes: mí ê [mi e] «eu sou», mí éra [mi ˈɛɾɐ] «eu era».
  • Uma situação paralela acontece com o pronome pessoal que representa a forma de complemento da primeira pessoa do singular.
    As variantes de Barlavento mantêm a pronúncia original [m]: levó-m’ [leˈvɔm] (Boa Vista, Sal e São Nicolau), levá-m’ [leˈvam] (São Vicente), levé-m’ [leˈvɛm] (Santo Antão), metê-m’ [meˈtem], c’dí-m’ [kdim], pô-m’ [pom], bambú-m’ [bɐ̃ˈbum] (Boa Vista, Sal e São Nicolau), lambú-m’ [lɐ̃ˈbum] (São Vicente e Santo Antão).
    Nas variantes de Sotavento a pronúncia [m] desapareceu, mas nasalizou a vogal precedente: lebâ-m’ [leˈbɐ̃], metê-m’ [meˈtẽ], cudí-m’ [kuˈdĩ], pô-m’ [põ], bumbú-m’ [bũˈbũ].
  • Aqui neste artigo, o pronome sujeito é convencionalmente escrito m’, e o pronome complemento é convencionalmente escrito –m’, seja qual for a variante.

Nota acerca do fonema /ŋ/

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  • O fonema /ŋ/ só existe no crioulo de Santiago, em palavras que se supõe serem de origem africana. Ex.: ngúli /ˈŋuli/ «olhar de viés» diferente de ’ngúli /ˈŋɡuli/ «engolir». Não se trata de uma sequência de um som nasal seguido da consoante /ɡ/ (como na palavra portuguesa «pingar»), mas trata-se sim de uma consoante nasal velar, como em inglês king.

Descrição dos fonemas semivocálicos

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Fonema Exemplo Significado em português Descrição
/j/ i /baj/ ir Aproximante medial palatal sonora,
como em português pai.
/w/ u /sew/ céu Aproximante medial labiovelar sonora,
como em português u.

Notas acerca das semivogais

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  • Presentemente não existe consenso se no crioulo cabo-verdiano existem ditongos crescentes[3] (pulícia /pu.ˈli.sjɐ/, tuádja /ˈtwa.ʤɐ/) ou se são hiatos[1] (pulícia /pu.ˈli.si.ɐ/, tuádja /tu.ˈa.ʤɐ/).

Referências

  1. a b c d e f Tude, Rui C. D. (1995)
  2. a b c Silva, Baltasar Lopes da (1957)
  3. Veiga, Manuel (1982)
  • O dialecto crioulo de Cabo Verde (Silva, Baltasar Lopes da — 1957)
  • Diskrison Strutural di Lingua Kabuverdianu (Veiga, Manuel — 1982)
  • Fonética do crioulo cabo-verdiano (Tude, Rui Calo Dá — 1995)
  • Handbook of the International Phonetic Association (International Phonetic Association — 1999) ISBN 0-521-63751-1
  • Projecto Diversidade Linguística na Escola Portuguesa (ILTEC) — Crioulo de Cabo Verde (Pereira, Dulce — 2006)

Ligações externas

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