Cristianismo liberal – Wikipédia, a enciclopédia livre

Cristianismo liberal (ou liberalismo teológico) representa a tentativa de abordar o cristianismo de uma perspectiva crítica, aberta, desconsiderando eventos sobrenaturais, sem negar ou menosprezar a importância da experiência religiosa e do compromisso religioso.[1]

Além de uma abordagem de reflexão religiosa, o termo também se aplica a um movimento teológico no seio do protestantismo cuja produção intelectual ocorreu entre o final do século XVIII e o início do século XX. A teologia liberal interpretava as doutrinas cristãs levando em consideração o conhecimento moderno, a ciência e a ética.[2] O liberalismo teológico enfatizava a importância da razão e da experiência sobre a autoridade doutrinária.[3] Os cristãos liberais viam sua teologia como uma alternativa ao racionalismo ateísta e às teologias tradicionais baseadas na autoridade externa (como a Bíblia ou tradição sagrada).[3]

A teologia liberal surgiu da reação ao racionalismo iluminista e da valorização da experiência e essência pelo romantismo dos séculos XVIII e XIX, principalmente entre igrejas protestantes europeias e seu correspondente no catolicismo, o modernismo teológico.[4]

A influência da teologia liberal, fundamentada em uma visão positiva da humanidade, sucumbiu diante dos horrores da 1a Guerra Mundial.[5] Drasticamente, o movimento da teologia liberal diminuiu com a ascensão do pentecostalismo na década de 1920, da neo-ortodoxia na década de 1930,[6] do movimento ecumênico e missionário nos anos 1940, do evangelicalismo nos anos 1950, da teologia da libertação na década de 1960 e com a teologia pós-liberal dos anos 1990.[7]

Apesar de sua quase extinção, há ainda no início do século XXI alguns poucos teólogos liberais, como o teólogo Marcus Borg, o bispo episcopaliano John Shelby Spong e o teólogo alemão Jörg Lauster.[8] Atualmente, os aderentes dessa teologia congregam em denominações diversas ou se comungam em pequenas denominações como a Igreja Presbiteriana não Subescrevente da Irlanda, a Congregação Unitarista de Pernambuco, a Igreja Cristã Livre do Recife ou associações como a Rede Europeia Protestante Liberal.[9]

O início da teologia liberal está na reação ao racionalismo que o teólogo alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834) propunha com base na teologia natural. Diante dos questionamentos da historicidade das Escrituras pelos racionalistas, Schleiermacher argumentava que a verdadeira religião seria dependente do sentimento humano da comunhão com Deus. Deus só poderia ser experimentado por meio do sentimento, não da razão, pois a humanidade ao ser consciente de seu próprio pecado e de sua necessidade de redenção, que só pode ser realizada por Jesus Cristo, deveria reunciar-se a ele.[10][1]

Meio século depois de Schleiermecher, outro teólogo, Albrecht Ritschl (1822-1889), impulsionou a teologia liberal. Ritschl discordava da ênfase de Schleiermacher no sentimento, pois isso levaria a um sentimentalismo, um misticismo ou um subjetivismo. Antes, a crença religiosa deveria ser baseada objetivamente nos eventos históricos registrados no Novo Testamento, pois seria o testemunho da missão divina de Jesus. Todo o conhecimento disponível da história, da linguística e arqueologia deveria ser recrutado para o estudo da Bíblia. Porém, alinhado com a naturalismo metodológico, Ritschl não encontrou bases históricas para as doutrinas como o nascimento virginal de Jesus, da Trindade ou do sacrifício vicário, tampouco para a historicidade de milagres. Contudo, o centro de sua teologia seria morte de Jesus Cristo, a qual representaria um exemplo da possibilidade de redenção da humanidade. A vida cristã deveria ser devotada à atividade ética e ao desenvolvimento. Desse modo, as doutrinas cristãs funcionariam como julgamentos de valor, em vez de afirmações de fatos. A superação do pecado e a entrada no Reino de Deus se dava pela prática da caridade e da comunhão entre as pessoas, não pela fé em Cristo.[11]

Ernst Troeltsch (1865-1923) foi outro destacado defensor do liberalismo teológico. Segundo ele, o cristianismo seria uma religião entre tantas outras, e Deus se revelava em todas, sendo que o cristianismo fora o ápice da revelação. Dessa forma, tal como Schleiermacher, defendia a salvação de não cristãos, pois a obra salvítica de Jesus Cristo impactava toda a humanidade, não havendo conflito entre a ética cristã e a vida espiritual e ética de outras religiões.[12]

Um dos últimos teólogos liberais de relevo foi Albert Schweitzer (1875-1965). Este missionário, músico e laureado pelo prêmio Nobel foi um dos primeiros a diagnosticar a crise do movimento. Para Schweitzer, a imagem de Jesus forjada nos círculos da teologia liberal atendia as demandas das sociedades modernas. No entanto, Jesus Cristo seria de um profeta apocalíptico, com o cristianismo primitivo sendo caracterizado pela esperança de uma futura vinda do reino de Deus. Assim, Jesus Cristo não poderia ser reduzido ao sentimento, à história ou à ética.[13]

Para os teólogos liberais, a Igreja é o lugar da comunhão humana compartilhando a experiência (de sentimento segundo Schleiermacher; de realidade histórica para Ritschl; ou de ética para Troeltsch) divina. E a Igreja deve guiada pela Escrituras Sagradas como registros dessa experiência, sem interpretações dogmáticas.[1]

Uso distorcido do termo

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Por desconhecimento teológico ou deliberamente, entre círculos fundamentalistas, reacionários e conservadores é comum referir-se a quem não subscreva às suas doutrinas como teólogos "modernistas" ou "liberais".[14] No entanto, essa pejoração trata-se mais de uma falácia do espantalho, sem necessariamente o conteúdo teológico dos oponentes serem ligados ao movimento histórico de liberalismo teológico.[1]

Outra associação indevida do termo "liberalismo teológico" é aplicada a biblistas e teólogos que adotam o método histórico-critico de hermenêutica bíblica enquanto a posição "conservadora" ou "tradicionalista" supostamente adotaria o método histórico-gramatical. Entretanto, um dos pioneiros norteamericanos da teologia liberal, Hosea Ballou, empregava o método histórico-gramatical; enquanto o biblista aderente do evangelicalismo, William Robertson Smith, aderia ao método histórico-critico.

Frequentemente, promotores do diálogo ecumênico são tachados de "liberais", embora não tenha sido a aproximação inter-religiosa parte essencial do liberalismo teológico, o qual abrigava desde ativistas anti-pluralismo religioso durante o Kulturkampf como também interlocutores do Parlamento Mundial de Religiões. Enquanto isso, o movimento ecumênico contemporâneo foi lançado por evangelicais nas conferências missionárias de 1888 a 1910.[15]

Tampouco há relação necessária entre teologia liberal e pautas sociais progressistas. en:Baden Powell, um dos primeiros teólogos liberais britânico, era notório apoiador do Partido Conservador.[16] Em contraste, seu contemporâneo o pregador teologicamente conservador Charles Spurgeon era vocal e irredutível com causas progressistas liberais, como o abolicionismo, o sufrágio para classes trabalhadores, a educação pública gratuita, políticas públicas de redução de pobreza e campanhas anti-guerra e anti-imperialismo.[17]

Também é necessário observar que o liberalismo teológico nada tem a ver com a rejeição do criacionismo de terra jovem. Desde a patrística já se podia ver intérpretes lendo os dias de Gênesis como alegóricos, bem como teólogos conservadores hoje em dia admitindo uma idade antiga para a criação. Dentre estes, estão Francis Schaeffer[18] e William Lane Craig.[19] Ademais, sabe-se também que muitos dos teólogos conservadores do século XX acreditavam ou na teoria da lacuna ou na interpretação Dia-Era.[20]

Adicionalmente, não há ligação entre essa abordagem teológica ou o antigo movimento teológico liberal com a ideologia política chamada de liberalismo.

Referências

  1. a b c d Langford, Michael J. A liberal theology for the twenty-first century: a passion for reason. Routledge, 2017.
  2. Rasor, Paul (2005). Faith without certainty: Liberal theology in the 21st century. Boston: Skinner House Books 
  3. a b Dorrien, Gary (2001). The Making of American Liberal Theology: Imagining Progressive Religion, 1805-1900. Volume 1. Westminster John Knox Press.
  4. Moisio, Olli-Pekka (2013). Runehov, Anne L. C.; Oviedo, Lluis, eds. «Liberal Theology». Dordrecht: Springer Netherlands (em inglês): 1161–1164. ISBN 978-1-4020-8264-1. doi:10.1007/978-1-4020-8265-8_757. Consultado em 17 de abril de 2021 
  5. Chapman, Mark D. (2001). Ernst Troeltsch and liberal theology: Religion and cultural synthesis in Wilhelmine Germany. Oxford: Oxford University Press 
  6. O teólogo neo-ortodoxo H.R. Niebuhr disse a respeito do liberalismo teológico que proclamaria e adoria "um Deus sem ira, o qual trouxe homens sem pecado para um reino sem julgamento por meio de ministrações de um Cristo sem a cruz". The Kingdom of God in America (1937),
  7. Dorrien, Gary (2001). The Making of American Liberal Theology: Imagining Progressive Religion, 1805-1900. Volume 1. Westminster John Knox Press.
  8. Lauster, Jörg (2019). Liberale theologie heute; liberal theology today. Tübingen: Mohr Siebeck 
  9. European Liberal Protestant Network (2005). «European Liberal Protestant Network». European Liberal Protestant Network 
  10. Flamarique, Lourdes, Schleiermacher. La filosofía frente al enigma del hombre, Pamplona, EUNSA, 1999.
  11. "Ritschl, Albrecth." Cross, F. L., ed. The Oxford dictionary of the Christian church. New York: Oxford University Press, 2005.
  12. G. Cantillo, Introduzione a Troeltsch, (Colección "I Filosofi"), Laterza, Roma-Bari 2004.
  13. Schweitzer. Geschichte der Leben-Jesu-Forschung, 1906.
  14. Carlos Cunha. Teologia liberal: rompendo com o preconceito. DOM. 2017
  15. Stanley, Brian. The World Missionary Conference, Edinburgh 1910. Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 2009.
  16. de Groot, H. B. "Baden Powell, Scientist and Theologian: A Bibliographical Note." Victorian Periodicals Newsletter 5/6 (1969): 16-18.
  17. Spurgeon: How the politically liberal preacher became a conservative Christian paragon
  18. SCHAEFFER, Francis (2014). Gênesis no espaço-tempo. Brasília: Monergismo 
  19. CRAIG, William Lane (2021). In quest of the historical Adam: a biblical and scientific exploration. Grand Rapids: William B. Eerdmans Publishing 
  20. NOLL, Mark (1994). The scandal of the evangelical mind. Grand Rapids: Eerdmans Publishing Co. 
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