Tributo de sangue – Wikipédia, a enciclopédia livre

Sátira no jornal Cabrião em 1866. “Subdelegado: Meu caro, nós estamos precisando de gente. Se os solteiros fogem para o mato, não há remédio se não vir à cama dos casados. As ordens que temos são apertadas!”

O “tributo de sangue” era como era conhecido o recrutamento forçado para as Forças Armadas do Brasil até a implementação do serviço militar obrigatório com base na Lei do Sorteio em 1916. Uma lei mais antiga já havia estabelecido o sorteio militar em 1874, mas a resistência popular dos rasga-listas impediu sua implementação e o recrutamento forçado continuou a existir na prática. Nesse modelo os efetivos incorporados eram pequenos. Os soldados eram profissionais, servindo às vezes por até 20 anos, e não seguiam a uma reserva ao final do serviço. Nem todos os soldados e marinheiros serviam forçados, pois havia voluntários. O Estado tinha um baixo grau de burocratização e alcance sobre a população, deixando a administração do recrutamento sob a influência das elites locais. O Exército tinha pouco controle sobre o processo. A apreensão dos recrutas era realizada por destacamentos policiais e militares.

Com origens na Europa, o recrutamento forçado brasileiro existia desde o período colonial. O recrutamento era violento, chamado de “caçada humana”, e o serviço era em condições duras, sendo considerado um castigo. A população livre pobre fazia o possível para escapar dos recrutadores, e a fuga de trabalhadores podia prejudicar a economia. O poder central, desejoso de preencher as fileiras sem prejudicar a economia, vivia num equilíbrio precário com os agentes administrativos, que precisavam cumprir a tarefa sem interferir nas redes de clientelismo, e a população livre. O recrutamento esbarrava num grande número de isenções definidas em lei, como aos guardas nacionais, e numa rede de proteção pelo clientelismo, não alcançando os trabalhadores protegidos pelas elites locais. Para os patronos, escolher quem seria protegido era um instrumento poderoso de controle. O recrutamento recaía nos que não encontravam proteção, considerados a parcela improdutiva da população. A moralidade popular tinha um ideal do que seria um recrutamento justo, com merecedores e não merecedores do encargo.

O recrutamento forçado não dava conta de preencher nem mesmo os pequenos efetivos da tropa de linha em tempo de paz. Em 1874 o ministro da Guerra estimou ser necessário prender 20 mil indivíduos para conseguir 2 mil recrutas. A grande demanda por efetivos na Guerra do Paraguai (1864–1870) sobrecarregou o sistema e criou tensão nas suas relações sociais. A ineficiência da mobilização foi um dos motivos da guerra demorar. Tanto o oficialato militar quanto parlamentares reformistas desejavam a reforma do recrutamento ao longo do século XIX, buscando civilizar a “caçada humana” e modernizar as Forças Armadas. A inspiração era os exércitos europeus, seja os construídos pelo serviço militar obrigatório ou pelo voluntariado. A tentativa de reforma de 1874 falhou por ameaçar o modo de convivência da sociedade com o recrutamento, e mesmo o primeiro sorteio militar em 1916 veio oito anos após a aprovação da nova lei em 1908.

Modelo de serviço

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Soldados brasileiros em procissão na Guerra do Paraguai

Houve continuidade no recrutamento de praças entre o início da República,[1] o Império, a colônia e Portugal, embora o modelo português nos séculos XVII e XVIII, típico do Antigo Regime europeu, tenha encontrado condições diferentes na América portuguesa. Também era herança portuguesa a distinção entre a tropa regular ou de primeira linha e as milícias e ordenanças.[2][3] Elas foram substituídas no Império pela Guarda Nacional, cujo recrutamento (chamado “alistamento”) era complementar e antagônico, absorvendo efetivos de nível social maior. Os guardas nacionais estavam isentos do recrutamento para o Exército e a Armada, e a instituição era, portanto, uma das formas de evasão.[4][5] Os guardas nacionais eram considerados cidadãos e qualificados, e seu serviço, um dever para o país, muito diferente das tropas de primeira linha.[6]

Os praças ingressavam no serviço militar voluntariamente ou à força.[7] No Brasil oitocentista, “recrutamento” era sinônimo de recrutamento forçado. As autoridades se referiam à “apreensão” e “prisão” dos recrutas. Não havia termo neutro para se referir a todos os recrutas (voluntários ou obrigados). O termo “recrutado” era às vezes usado especificamente para os obrigados.[8] Na legislação do tema, o termo “recrutamento forçado” aparece no decreto de 1835, mas não na instrução ministerial de 1822, que estabelece escoltas para os recrutados, mas sem correntes, algemas ou manilhas.[9] Ainda assim, havia notícias de recrutamento literalmente "a laço", com a condução de recrutados amarrados.[10] A população livre via o serviço militar como degradante, e desde o século XVII as autoridades notavam a repugnância com que ele era recebido.[11] A violência e arbitrariedade do recrutamento, somadas à disciplina dura e baixa remuneração no serviço, davam-no a conotação de castigo,[12][13][14] sendo associado ao cativeiro na consciência popular.[15] O processo era chamado de “caçada humana”[16] ou “tributo de sangue”.[17]

Poucos ingressavam voluntariamente.[18][19] Os voluntários eram principalmente desocupados ou fugidos das autoridades, mas também alguns filhos de militares, filhos problemáticos alistados pelos pais e rapazes pobres em busca de ascensão social;[7] mesmo entre os pequenos proprietários, muitos viviam em condições piores que as dos soldados. O voluntariado era possível fuga da “fome, desemprego, falta de moradia e, às vezes, da escravidão”.[20] Na Guerra da Independência houve genuíno entusiasmo militar entre a população, mas ele foi a exceção à regra.[21] O decreto de 1835 concedeu aos voluntários um soldo bônus, tratamento diferenciado, menor tempo de serviço e a possibilidade de servir mais perto da família, mas os incentivos não foram suficientes para os voluntários deixarem de ser minoria.[22] Na Marinha havia mais um meio de ingresso, as Escolas de Aprendizes-Marinheiros.[23]

Os soldados eram profissionais, servindo até a expulsão ou final da carreira. Eles não seguiam a uma reserva.[24] O tempo de serviço variava: em 1808, eram 16 anos para os recrutados e 8 para os voluntários, caindo a 6 anos para ambos em 1875 e 3 em 1891.[25] Os melhores renovavam seu engajamento por até 20 anos de serviço, quando a reforma era garantida.[26] No Império, com a dificuldade de repor o efetivo, era comum o Estado prolongar ilegalmente o tempo de serviço.[27] Os graduados (cabos, sargentos e subtenentes) vinham da promoção de soldados.[24] Nos longos períodos de serviço, os soldados mais velhos afeiçoavam-se aos chefes, instalavam suas famílias próximas aos quartéis e eram acompanhados pelas mulheres em campanha.[26]

Execução do recrutamento

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A Coroa portuguesa e posteriormente o Estado imperial tinham um baixo grau de burocratização.[28] Os corpos policiais tinham poucos meios para atuar, faltava mão-de-obra qualificada na administração e era muito difícil manter um registro civil e realizar o censo demográfico. Havia resistência ao censo, como na Revolta do Ronco da Abelha, e um dos motivos era justamente o temor do recrutamento. Não havia um aparato de execução e monitoramento suficiente para diretamente taxar e recrutar a população.[29][30] A solução era delegar poderes a potentados locais.[28] A administração e fornecimento dos recrutas cabiam aos comandantes de milícias e da Guarda Nacional, delegados e subdelegados de polícia, párocos locais e juízes de paz, ligados aos potentados locais, envolvendo interesses privados.[12][31] O Exército tinha papel restrito no processo, embora contribuísse com destacamentos.[8]

O Estado era fortalecido, mas também as autoridades locais.[32] O controle sobre quem seria ou não recrutado era um instrumento poderoso.[33] O recrutamento era considerado pernicioso para as eleições,[34] pois era comum recrutar adversários políticos, a ponto de uma lei de 1846 proibi-lo no período de 60 dias antes e 30 dias depois das eleições, mas sua aplicação foi limitada.[35][36][37] A elite política fazia parte da classe que se beneficiava do patronato, protegendo seus clientes do recrutamento.[38] Com o desenvolvimento do coronelismo, a ameaça do recrutamento era uma das formas dos coronéis intimidarem eleitores a votar como queriam.[39]

A atividade dos agentes recrutadores não era regular, mas episódica e imprevisível. Ela causava desorganização social e ainda assim não atendia às necessidades do Exército.[40] Fugas espetaculares ocorriam quando chegavam os agentes,[41] e a população cobria os fugitivos. A população pobre livre migrava continuamente pela imensidão do país, e um dos motivos era o temor do recrutamento.[42] O abandono das vilas e cidades e a fuga dos moços prejudicavam a economia:[11] “à sua aproximação os jornaleiros desapareciam e as colheitas perdiam-se”.[43] As Forças Armadas competiam com os proprietários de terras, que não queriam perder braços nas suas lavouras.[44] Para ter sucesso, os recrutadores precisavam de segredo e simultaneidade e usavam de numerosos ardis, aumentando a hostilidade da população.[45] O recrutamento era um “jogo de gato-e-rato”.[11]

Função na sociedade

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“Inspetor de quarteirão: - Se não quer ir para S. Paulo assentar praça, há de casar com minha tia. Recruta: Só se Vmc. me der um mês para pensar.”

Os principais obstáculos ao recrutamento eram os privilégios e isenções locais e as redes de proteção. Estavam imunes não só os ricos como também seus criados e dependentes.[43] As isenções desuniversalizaram o serviço. Seu ideal era proteger desamparados (viúvas, órfãos, casados, filhos únicos) e não prejudicar a economia.[46] Eram recrutáveis os homens solteiros de 18 a 35 anos. Ricos podiam comprar isenções ou apresentar substitutos, e havia numerosas isenções para a população economicamente ativa, como um filho de cada lavrador e alguns empregados de cada comércio. A cláusula “uma vez que exercitem os seus ofícios efetivamente e tenham bom comportamento” dava margem aos recrutadores. Indivíduos isentos eram capturados, mas os presidentes provinciais, representantes da Coroa, soltavam muitos dos recrutados, reforçando sua legitimidade.[47] Petições eram dirigidas aos presidentes provinciais, aos chefes de polícia e, após 1871, aos tribunais.[48] Muitas das petições eram feitas por mulheres.[49][50] Recrutas e recrutadores travavam “guerras de ofícios” para provar ou refutar se encaixavam numa isenção.[51] Também eram formas de evasão os casamentos precipitados, falsificações, automutilação[52] e as migrações.[42]

Os pobres livres refugiavam-se nos mandões locais, que podiam obstruir o recrutamento ou interceder pela soltura. Disputas entre os senhores locais, cada um defendendo seus clientes, podiam dificultar o recrutamento, e às vezes havia resistência violenta. Se os recrutadores usassem violência excessiva, os trabalhadores desapareceriam no interior. Havia um frágil equilíbrio entre o poder central, desejoso de preencher as fileiras sem prejudicar a economia, os agentes administrativos, que precisavam cumprir a determinação sem interferir nas redes de clientelismo, e a população, que buscava proteção nessas redes. O recrutamento tinha limites, com muitas solturas, e recaía sobre os que não encontravam proteção, como viajantes, trabalhadores itinerantes e lavradores vendendo suas safras longe de suas terras, mas especialmente sobre os homens considerados ociosos e vagabundos,[47][43] a parcela da população considerada improdutiva.[53]

Os recrutados eram “vadios, ex-escravos, órfãos, criminosos, migrantes, trabalhadores sem qualificação e desempregados”, contribuindo à conotação degradante do serviço militar.[54] A caserna era “o equivalente masculino dos bordéis”, e os soldados, vistos como “degenerados, criminosos, doentes, desajustados e irrecuperáveis sociais”.[55] A polícia usava o recrutamento para se livrar dos desordeiros não condenados pelos tribunais.[56] Para a Marinha e outras instituições, o serviço militar com disciplina dura serviria de correção moral para os recrutados.[57] Recrutamentos em massa foram usados como punição após as revoltas do período regencial, com os recrutas transferidos a províncias distantes, mas em condições normais os números eram reduzidos. O papel do serviço militar na manutenção da ordem era irrisório, dado o número muito pequeno de recrutados.[58][59] Nem todos tinham uma visão negativa do serviço militar. Alguns praças, suas famílias e amigos tinham orgulho da carreira, e políticos diferenciavam nos discursos os soldados obedientes à lei dos “degenerados”.[60]

A justiça distributiva era o problema na escolha dos recrutados, regida não só pela lei como também por uma “economia moral de regras não-escritas” e concepções de quem deveria receber os encargos.[28] Os “pobres honrados”, pequenos agricultores que cumpriam suas obrigações familiares e da Guarda Nacional, viam o recrutamento e o clientelismo como uma forma natural de se diferenciar dos indivíduos socialmente indesejáveis.[61] Ele cumpria uma função moral, distinguindo entre “casados e “mal casados”" filhos bons e maus, artífices industriosos e vadios”.[40] Antes da abolição, o recrutamento separava o obediente à lei do criminoso, legítimo do ilegítimo, livre do escravo, pobre honrado do desonrado e masculinidade respeitada ou desonrosa.[62] Por mais arbitrário e confuso que fosse, havia um modo de convivência precário com o tributo de sangue.[63]

Capacidade de mobilização

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O Império mantinha efetivos pequenos no Exército, oscilando em tempos de paz entre 15 e 20 mil após 1830.[64] Um quarto destes precisavam ser substituídos anualmente devido à doença, morte, fim dos termos de serviço e deserção. Mesmo com o efetivo pequeno, o recrutamento não dava conta de preencher as fileiras. Os soldados eram “difíceis de achar e de fazer, e facilmente volatilizáveis”. Não era possível incorporar grandes efetivos.[65] Em 1874, João José de Oliveira Junqueira Júnior, então ministro da Guerra, calculou ser necessária a prisão de 20 mil indivíduos para fazer 2 mil recrutas. Os demais eram perdidos para as isenções, defeitos físicos e fugas.[40]

De 1860 a 1875, as províncias do Alagoas, Amazonas, Espírito Santo, Maranhão, Pará, Pernambuco e Sergipe, além da Corte, contribuíam um número de recrutas proporcionalmente maior que sua população. Já a Bahia, Minas Gerais, Paraíba, Rio Grande do Norte, Santa Catarina e São Paulo tinham menor contribuição per capita. A representação das outras províncias oscilava. Minas Gerais, província extensa e populosa, se destacava pela sua insignificante participação. A tropa de linha tinha pouca presença para cumprir as cotas de recrutas. As províncias do Norte imperial (atuais Norte e Nordeste) como um todo contribuíram com 53% dos recrutados durante a Guerra do Paraguai.[66]

A Guerra do Paraguai foi morosa em parte devido à dificuldade de mobilização.[67] O sistema não aguentou a pressão. Mesmo com o apelo aos Voluntários da Pátria, o entusiasmo popular inicial se esvaiu. Foi preciso o recrutamento forçado em larga escala, prendendo homens tradicionalmente livres do serviço militar.[68][67] A santidade do ambiente doméstico foi ameaçada, e “homens de família” foram obrigados a servir com escravos e criminosos.[69] O Exército precisou interferir na Guarda Nacional, tradicional refúgio do recrutamento.[70] Houve resistência de elites locais e pobres livres.[68]

Tentativas de reforma

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Oficiais defendiam a reforma do recrutamento desde os anos 1840,[71] desejando mão-de-obra de melhor qualidade.[72] No Legislativo ela era discutida desde 1827 e o modelo vigente era condenado na retórica, mas sucessivos projetos não conseguiram eliminá-lo, evidenciando o quanto ele ainda era conveniente ao poder.[73] Na Europa, referência para a elite brasileira, o modelo após a Guerra Franco-Prussiana (1870–1871) era da industrialização, Estados com maior controle sobre a população e grandes exércitos de conscritos, que, após 1–3 anos de serviço, seguiam a uma crescente reserva, a ser mobilizada em guerra através da rede ferroviária.[74] O recrutamento forçado estava longe do ideal de civilização da elite.[16] Após o esgotamento do modelo evidenciado pela Guerra do Paraguai,[75] em 1874 foi enfim aprovada uma lei para o serviço através do sorteio, inspirada no modelo francês. Não foram aceitos os modelos prussiano, da conscrição de classes inteiras, e britânico, de uma força apenas voluntária.[76][77]

A lei foi recebida com oposição em quase todas as classes sociais.[78] O encargo militar exigido pelo Estado se tornaria mais abrangente, obrigando os agregados dos chefes locais a servir.[79] Embora vista pelos seus realizadores como um avanço institucional, ela era uma ameaça ao modo de convivência estabelecido ao redor do recrutamento e à moralidade popular. Em agosto de 1875, no dia previsto para o início do alistamento multidões de “rasga-listas” em dez províncias impediram os trabalhos. A resistência continuou até tornar a lei “letra morta”, preservando o status quo. O sistema vigente saiu fortalecido. A polícia não mais podia entregar os presos diretamente ao Exército, mas fazia-os se apresentarem como voluntários.[80][81]

A Constituição de 1891 aboliu no papel o recrutamento forçado,[82] e no início da República todos os praças eram no papel voluntários. O recrutamento forçado continuava a ocorrer.[1] Em 1908 foi aprovada outra lei do sorteio, mas ela só foi implementada em 1916, substituindo o recrutamento forçado.[83] Diante da modernização da Argentina, vista como o inimigo possível, e da demonstração da guerra total na Primeira Guerra Mundial, o modelo brasileiro, sem reservas e mobilização geral, estava anacrônico.[84]

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